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sábado, 6 de fevereiro de 2010

Vida sofrida...

Porque todos dizem que a vida é sofrida? Tenho me perguntado muito o que é uma vida sofrida. Em épocas de tragédias pela web, tudo fica mais rápido, ágil. Tudo ao alcance dos olhos num piscar. Você clica e lá está o Haiti destruído. O mundo comemora o salvamento de mais uma vida sob os escombros. Como pode uma pessoa sobreviver 11 dias embaixo de toneladas de concreto? Milagre? Talvez.

Mas será isso o sofrimento? Não sei. A psiquiatria me dá a oportunidade de ouvir histórias de vida. A relação médico-paciente permite entrar nos cantos mais escuros da alma. Será que ali está o sofrimento? O diálogo seguinte aconteceu numa das tantas tardes de sábado em que trabalho numa pequena cidade do interior. Não foi hoje. Pois hoje está tranquilo. Tanto que estou escrevendo.

Fui chamar a paciente. A secretaria me passou a ficha e ela se chamava Rosa. Sempre observo os detalhes do paciente. O caminhar, as roupas, a face, o jeito, se está sozinho ou não. Dona Rosa parecia envelhecida. Tinha rugas, marcas de expressão. A linguagem técnica me irrita. Maldita dermatologia. Qual a diferença entre uma mancha e uma mácula? Minha vontade era descobrir como aquelas marcas estavam ali. O que cada uma daquelas rugas significava na vida de Dona Rosa.

-Boa tarde Dona Rosa, como vai?
-Não sei doutor, por isso estou aqui.
-Mas então me conta...
-Eu posso falar? Percebi um receio, uma estranheza quanto a oportunidade que estava lhe dando. O simples ato de dialogar.
-Claro que sim...
-Doutor, fui casada durante 20 anos. Meu marido é alcoólatra. Tenho 3 filhos com ele. Toda vez que ele bebia me batia. Apanhei de todas as maneiras que o doutor pode imaginar.
-Há quanto tempo a senhora está separada?
-Há 3 anos. Mas ele segue me ameaçando. Diz que vai mandar uns amigos me matar. Que se não me matar, vai matar meus filhos. A gente já se acostumou. Toda vez que ele bebe, é dia de sofrimento. Fechamos as portas da casa, as janelas. Fica um silêncio só.
-E como a senhora anda se sentindo?
-Não sei mais. Sinto um vazio na alma. Sinto que me levaram a esperança de viver. Não sei o que sobrou de mim. Apanhei muito doutor.

Algumas coisas ficaram mais nítidas nesse momento. A paciente apresentava sinais de envelhecimento que não eram compatíveis com a sua idade. O seu olhar era apagado, "murcho", sem vida. As cicatrizes não eram só na pele. Eram marcas profundas na alma. Foram escritas pela submissão. Por momentos de crueldade. Algo que vemos nos filmes e lemos nos livros de história. Resolvi perguntar porque ela veio consultar comigo.

-Mas como a senhora me descobriu aqui Dona Rosa?
-Doutor, não sei se o senhor é bom ou ruim. Mas não é da cidade. Eu precisava falar com alguém. Enfrento sozinha tudo. Paguei a consulta com o dinheiro de uma faxina que fiz durante a semana.

Parte do envelhecimento que falei estava nisso. Uma vida sofrida, de esforço diário pelo pão de cada dia. Mas uma vontade inacreditável de voltar a ser feliz. Uma vontade de mudar a vida. De sonhar com um futuro sem violência. Num mundo seu, em que não existam brigas, discussões, violência doméstica. No nosso mundo, esse maquiado pelo entretenimento, essas são situações distantes. Existem em filmes, em novelas. As brigas que vemos, são as do BBB, porque alguém não lavou a louça ou falou mal do outro. Na vida real, não tem líder para indicar o bicho papão para o paredão. Na vida real não tem o anjo dando o colar da imunidade. Na vida real a violência doméstica está ao lado. Embaixo do nosso nariz. Ninguém fala nada. Ninguém vê nada.

Dona Rosa segue consultando. Descobriu que tem direitos. Que pode se afastar desse mundo de sofrimento. Descobriu a Lei Maria da Penha. Seu marido está afastado. Ela ainda não sorri. Mas voltou a sonhar. Como ela mesmo me contou:

-Era um lugar com crianças, com mato em volta. Me senti feliz naquele lugar. Eu era uma das crianças. Pulava por todos os lados.

Não tenho como trazer Dona Rosa novamente para a sua infância. O tempo nos afasta das imagens antigas. A imagem do espelho é cruel. Ela mostra as marcas da realidade e do tempo. Talvez a nova felicidade de Dona Rosa seja ver seus netos correndo livres, brincando sem nenhum tipo de ameaça. E talvez essa seja a sua felicidade. O que é mesmo uma vida sofrida? Acredito que nunca vou ter essa resposta. Mas vou pensar muito mais antes de me queixar dela e de seus dilemas.

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